TESTEMUNHA OCULAR DE UMA TRAGEDIA
50 ANOS
DA QUEDA DO VOO 555 DA VASP EM LONDRINA
(Ivan Pegoraro)
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Modelo do DC3 igual ao relatado neste artigo |
Aquele dia 14 de setembro de
1969, domingo, amanheceu preguiçoso como todo final de inverno. A temperatura estava quente e o clima seco.
Naqueles dias, tinha-se de inventar o que fazer, pois as opções de lazer eram
mínimas. Londrina naquela época tinha uma população estimada de 160.000 (cento
e sessenta mil) pessoas. José Makiolke comandava na Rádio Alvorada um programa
de enorme sucesso entre a rapaziada, chamado “Os Brotos Comandam” e a música
mais tocada era “Sentado a Beira do Caminho” do Erasmo Carlos. Após tomar meu café
em casa, funcionei meu JEEP DKW, de cor lilás, com as rodas amarelas fogo, com
uma flor margarida pintada nas laterais dos para-choques e fui para o centro,
estacionando em frente a Batavo, alí no começo da Avenida Paraná onde a turma
se reunia. Por ali ficamos até por volta do meio dia. Em seguida o pessoal se
dispersou havendo um ajuste tácito de todos se encontrarem novamente naquele
local, a partir de quinta-feira, sempre após às 19:00 hs. Depois do almoço fui
até a casa da Áurea na Avenida Santos Dumont, pois tínhamos combinado de ir
assistir no Cine Augustus o filme, “Os Intrépidos Homens em Seus Calhambeques
Maravilhosos” com Tony Curtis e projeção em 70 mm., com todo conforto do ar
condicionado propagado nos anúncios do jornal Folha de Londrina. O filme
começou às 14:30 e como era longa metragem, terminou por volta das 17:30.
Voltamos para sua casa e ficamos por ali conversando e vendo televisão preto e
branco dos programas da TV Coroada, afiliada então da Rede Tupi. Por volta das
18:30 hs, numa decolagem de rotina, ali perto no Aeroporto Santos Dumont uma
avião da VASP, DC3, prefixo PP-SPP partia rumo a São Paulo levando a bordo 20 ocupantes
entre passageiros e tripulantes. O avião fez escala em Londrina proveniente de Maringá
e antes disso Campo Grande, com destino final em São Paulo. Enquanto isso na casa de Aurea, na sala de televisão, assistíamos
os comentários e imagens do recente pouso do homem na lua e comíamos um
saboroso bolo de fubá feito por sua mãe Waldy que gentilmente o preparou com
esmero e muito prazer. Sua filha mais velha também Waldy e algumas amigas
compartilhavam aqueles momentos de descontração. Certamente enquanto nos
servíamos daquele bolo, Aníbal Ferreira, o comissário do voo oferecia aos seus
passageiros aquelas delícias de aperitivos que a VASP tanto aprimorou, não
importando se o trajeto era longo ou não. Se o tempo estava firme em Londrina,
em São Paulo chovia e muito e isso preocupou demasiadamente o comandante do voo
555, pois com apenas uma hora de viagem, faltando ainda duas para chegar ao
destino, na altura de Ourinhos, o motor esquerdo começou a ratear de forma
intensa e constante. Ao perceber a irregularidade o comandante imediatamente
“embandeirou” aquele motor e fez contato com ambas as torres de controle
recebendo a informação de que em São
Paulo chovia muito e o céu totalmente encoberto, enquanto que Londrina
continuava firme e com boa visibilidade.
Ourinhos não possuía sistema de balizamento noturno de modo que a
alternativa foi retornar em direção à Londrina. Após comunicar a torre assim
foi feito. Uma hora havia se passado desde que partira desta cidade.
Certamente, o Comandante deve ser repassado aos passageiros informações a
respeito dessa decisão, inclusive tranquilizando-os acerca do “embandeiramento”do
motor esquerdo, manobra esta que permite o funcionamento das hélices pela simples ação da velocidade
aliada ao vento. Na verdade aquela decisão, embora trouxesse alguma
preocupação, era uma manobra factível naqueles tempos de motor a pistão, com
treinamento especifico dos pilotos de como se comportar e o que fazer nessa
situação. Comunicada a torre de
controle de Londrina, o protocolo para este tipo de evento era declarar
emergência e adotar de imediato certos tipos de procedimento, sempre
admitindo-se a pior das possibilidades. Confirmado o retorno, a torre acionou o
Corpo de Bombeiros noticiando a necessidade de sua presença na pista do
aeroporto. Enquanto isso na Avenida
Santos Dumont, a mais ou menos 1 quilometro do terminal de passageiros, eu me preparava para ir embora pois o relógio
marcava 20:10 hs e no dia seguinte, de manhã, tínhamos aula de lógica e
psicologia no curso do 3º Clássico do Colégio Vocacional do Instituto
Filadélfia situado na Avenida J.K onde hoje funciona a Unifil. Já na porta de
saída da casa de Aurea eis que todos na sala começam a ouvir as sirenes dos
caminhões do Corpo de Bombeiros, que se dirigiam a toda velocidade em direção
ao aeroporto no final da Avenida Santos Dumont. Importante mencionar aqui que naquela
época o aeroporto não contava com brigada de incêndio, de modo que em
emergências como essa o Corpo de Bombeiros da cidade era convocado para prestar
os serviços que fossem necessários. A curiosidade neste caso sempre era muito
grande com muitos veículos seguindo os caminhões para seus passageiros
acompanharem de perto os acontecimentos. Minha decisão ao ver aquela
movimentação foi seguir atrás também já que naquele horário, certamente algo
estava para acontecer. Aurea decidiu ir também, enquanto que as demais amigas
resolveram ficar. No avião, as luzes da
cidade de Londrina já estavam próximas, anunciando o Comandante que o pouso
seria realizado sem maiores preocupações, devendo afivelarem seus cintos de
segurança. Levamos cerca de três minutos para chegar ao aeroporto e do lado
esquerdo do terminal, onde hoje ainda existe um alambrado e um portão, nos
deparamos com o acesso a pista todo aberto em função das viaturas dos bombeiros
que por ali ingressaram. Entrei também e imediatamente após o acesso, cerca de
20 metros do portão, estacionei liberando porém a saída. As viaturas estavam à margem da pista, mais
ou menos em sua metade com as luzes vermelho e azul intermitentes. Tão logo
descemos do Jeep, já vimos aquele enorme DC3 se preparando para aterrisagem,
fazendo a aproximação ao que pareceu aos leigos, sem maiores problemas. Ninguém
por ali sabia ainda que o motor esquerdo estava “embandeirado”. Vinha descendo, normal, com o rugido do motor
constante e firme. De repente, mais ou menos 30 metros de altura da pista e uns
80 metros, talvez 100 do seu início, o motor urra e ao invés de descer, o
comandante arremete cuja manobra até hoje não se consegue a explicação cabal.
Se simplesmente tivesse apagado o motor direito, a aeronave teria planado e descido
sem nenhum revés. Ao arremeter, estávamos mais ou menos uns cem metros da
pista, na lateral, vimos os rostos das pessoas olhando pelas janelas,
possivelmente surpresas pela decisão do comandante de abortar a aterrissagem.
As luzes do interior do avião estavam acessas. Urrando com seu único motor o
avião começou a subir e se distanciar da pista. Em seguida, talvez a um
quilómetro da cabeceira começou a fazer uma curva a esquerda, inclinando a
asa. Eu e Áurea, além dos demais
espectadores que estavam ali e com toda certeza os bombeiros, e a torre e
demais funcionários, acreditou que a manobra seria concluída com sucesso
porquanto o pior teria passado que foi exatamente a arremetida inesperada. Mas não foi isso que aconteceu! Tão logo
começou a curva a esquerda, o avião, aquele enorme pássaro do ar feito de
alumínio, girou completamente num ângulo de 90 graus, com o seu dorso virado
para o aeroporto, e simplesmente despencou em direção ao solo. Apenas tivemos tempo de dizer: “caiu!!!”. Primeiro o clarão como se fosse um relâmpado.
Depois o estrondo como se fosse uma bomba. Jamais havia visto, assim como nunca mais vi, um avião com o bico para o chão e o dorso
virado para teu lado. As viaturas de imediato giraram e passaram por mim como
um raio, enquanto que também com a mesma rapidez funcionei meu DKV e parti
atrás dos caminhões. A queda ocorreu
onde era o horto florestal, perto do então Hospital de Tuberculose, hoje
Hospital Universitário. Chegamos ao local junto com os Bombeiros que ainda
estendiam as mangueiras para combater o incêndio. As labaredas não eram
extensas e pessoal se movimentavam junto a uma das asas da aeronave tentando
movê-la, não sei se para tentar salvar alguém ou pelo simples desejo de fazer
alguma coisa. Ao se aproximar dos destroços, vi e esta cena está
amarguradamente cravada na minha memória de onde jamais se desprendeu, dois ou
três corpos no chão, fumegantes, nus e
os braços em posição de boxeador. Num primeiro momento não consegui entender
aquilo, tamanho era o desespero. Por que nus? Por que soltavam fumaça? Por que
aquela posição? Alguns estampidos foram
ouvidos e os gritos dos bombeiros e o lamento das pessoas que por ali estavam
para ajudar. Tentamos pensar em algum
tipo de ajuda, quando então um oficial ali chegou e deu ordem para nos
afastarmos, nós e outras pessoas que estavam próximas dos escombros sob alerta
de que poderia haver mais explosões. Atendemos ao comando, retornamos ao Jeep,
e após alguns momentos da mais pura incompreensão, funcionei o mesmo, fiz a
manobra de retorno e deixei Aurea em casa. Somente depois disso consegui
entender que os corpos estavam nus porque o fogo havia queimado as suas
roupas; estavam fumegando porque este
mesmo fogo havia derretido as suas peles e as suas gorduras. E somente no ano seguinte,
1970, cursando o primeiro ano do Direito em Curitiba, na aula de Medicina Legal
vim a entender aquela posição dos corpos.
Quando o corpo humano sofre uma ação intensa no fogo, chama-se isso de
carbonização, com redução do volume corporal e redução da estatura de 100 a 120
cm. O corpo toma a posição de lutador de boxe, com semiflexão dos membros
superiores e inferiores e dedos em garra. Foi o que vi e então entendi. Houve um único sobrevivente que morreu dois
dias depois na Santa Casa. Aquele simpático comissário que mencionei no início
sofreu queimaduras tão graves, tão intensas, que seu corpo chegou a encolher,
segundo o jornal da época. Pesquisei junto ao Centro de Investigação e
Prevenção de Acidentes Aeronáuticos as causas deste acidente. Na página http://www2.fab.mil.br/cenipa/
consta
um campo para pesquisar a
ocorrência dos acidentes em todo país, inclusive o resultado da investigação.
Clica-se em “investigação” . Aparecem relatórios finais. Encontrei do ano de
1969 um único acidente, que não se refere a este relatado. Londrina ingressou no ano de 1969 no universo
dos grandes acidentes aéreos. Nunca mais estive no local da queda onde era o Matadouro Municipal. Fui lá esta semana e fiquei arrepiado pois cinquenta anos depois, exatamente o local da queda está preservado; uma quadra inteira cercada de arame farpado e é de propriedade da Aeronáutica. Interessante como o silêncio ali é paupável. Na área demarcada e mostrada abaixo, bem no seu lado esquerdo parei o meu Jeep. A rampa do Matadouro no lado direito da área ainda existe. Porque este avião caiu? Mas ficam
ainda, cinquenta nos depois, no dia da publicação em rede social deste pequeno
artigo, as dúvidas, principalmente os motivos que levaram o comandante a
arremeter aquele avião quando estava preste a tocar o solo. Talvez jamais
saibamos assim como jamais irei esquecer a tragédia daquele voo. A Torre de Controle perguntou ao piloto quando houve o início da abortagem: "- Tudo bem?" Ao que respondeu o comandante: "- Tudo Certo". Insistiu a Torre: "-Mas tudo bem mesmo" Neste momento exato o avião embicou e a resposta não chegou a ser ouvida. A partir dalí, o silêncio e as chamas. Agradeço as pessoas que me ajudaram neste artigo: Angelita Prado que compartilhou comigo as pequisas na UEL; Cirilo Soares na busca do local da queda.
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Rua Emílio Aranda Esquina com a Rua Dom João VI |
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Meu Jeep era muito parecido com este. Fonte: Google |
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Vista aérea do local do impacto obtida pelo Google |
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Mapa do Local do Impacto - Fonte: Google
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