sexta-feira, 13 de setembro de 2019


TESTEMUNHA  OCULAR  DE  UMA  TRAGEDIA
50  ANOS
DA  QUEDA  DO  VOO  555  DA  VASP  EM  LONDRINA

(Ivan Pegoraro)


Modelo do DC3 igual ao relatado neste artigo
Aquele dia 14 de setembro de 1969, domingo, amanheceu preguiçoso como todo final de inverno.  A temperatura estava quente e o clima seco. Naqueles dias, tinha-se de inventar o que fazer, pois as opções de lazer eram mínimas. Londrina naquela época tinha uma população estimada de 160.000 (cento e sessenta mil) pessoas. José Makiolke comandava na Rádio Alvorada um programa de enorme sucesso entre a rapaziada, chamado “Os Brotos Comandam” e a música mais tocada era “Sentado a Beira do Caminho” do Erasmo Carlos. Após tomar meu café em casa, funcionei meu JEEP DKW, de cor lilás, com as rodas amarelas fogo, com uma flor margarida pintada nas laterais dos para-choques e fui para o centro, estacionando em frente a Batavo, alí no começo da Avenida Paraná onde a turma se reunia. Por ali ficamos até por volta do meio dia. Em seguida o pessoal se dispersou havendo um ajuste tácito de todos se encontrarem novamente naquele local, a partir de quinta-feira, sempre após às 19:00 hs. Depois do almoço fui até a casa da Áurea na Avenida Santos Dumont, pois tínhamos combinado de ir assistir no Cine Augustus o filme, “Os Intrépidos Homens em Seus Calhambeques Maravilhosos” com Tony Curtis e projeção em 70 mm., com todo conforto do ar condicionado propagado nos anúncios do jornal Folha de Londrina. O filme começou às 14:30 e como era longa metragem, terminou por volta das 17:30. Voltamos para sua casa e ficamos por ali conversando e vendo televisão preto e branco dos programas da TV Coroada, afiliada então da Rede Tupi. Por volta das 18:30 hs, numa decolagem de rotina, ali perto no Aeroporto Santos Dumont uma avião da VASP, DC3, prefixo PP-SPP partia rumo a São Paulo levando a bordo 20 ocupantes entre passageiros e tripulantes. O avião fez escala em Londrina proveniente de Maringá e antes disso Campo Grande, com destino final em São Paulo.  Enquanto isso na casa  de Aurea, na sala de televisão, assistíamos os comentários e imagens do recente pouso do homem na lua e comíamos um saboroso bolo de fubá feito por sua mãe Waldy que gentilmente o preparou com esmero e muito prazer. Sua filha mais velha também Waldy e algumas amigas compartilhavam aqueles momentos de descontração. Certamente enquanto nos servíamos daquele bolo, Aníbal Ferreira, o comissário do voo oferecia aos seus passageiros aquelas delícias de aperitivos que a VASP tanto aprimorou, não importando se o trajeto era longo ou não. Se o tempo estava firme em Londrina, em São Paulo chovia e muito e isso preocupou demasiadamente o comandante do voo 555, pois com apenas uma hora de viagem, faltando ainda duas para chegar ao destino, na altura de Ourinhos, o motor esquerdo começou a ratear de forma intensa e constante. Ao perceber a irregularidade o comandante imediatamente “embandeirou” aquele motor e fez contato com ambas as torres de controle recebendo a informação de que em  São Paulo chovia muito e o céu totalmente encoberto, enquanto que Londrina continuava firme e com boa visibilidade.  Ourinhos não possuía sistema de balizamento noturno de modo que a alternativa foi retornar em direção à Londrina. Após comunicar a torre assim foi feito. Uma hora havia se passado desde que partira desta cidade. Certamente, o Comandante deve ser repassado aos passageiros informações a respeito dessa decisão, inclusive tranquilizando-os acerca do “embandeiramento”do motor esquerdo, manobra esta que permite o funcionamento das  hélices pela simples ação da velocidade aliada ao vento. Na verdade aquela decisão, embora trouxesse alguma preocupação, era uma manobra factível naqueles tempos de motor a pistão, com treinamento especifico dos pilotos de como se comportar e o que fazer nessa situação.   Comunicada a torre de controle de Londrina, o protocolo para este tipo de evento era declarar emergência e adotar de imediato certos tipos de procedimento, sempre admitindo-se a pior das possibilidades. Confirmado o retorno, a torre acionou o Corpo de Bombeiros noticiando a necessidade de sua presença na pista do aeroporto.  Enquanto isso na Avenida Santos Dumont, a mais ou menos 1 quilometro do terminal de passageiros,  eu me preparava para ir embora pois o relógio marcava 20:10 hs e no dia seguinte, de manhã, tínhamos aula de lógica e psicologia no curso do 3º Clássico do Colégio Vocacional do Instituto Filadélfia situado na Avenida J.K onde hoje funciona a Unifil. Já na porta de saída da casa de Aurea eis que todos na sala começam a ouvir as sirenes dos caminhões do Corpo de Bombeiros, que se dirigiam a toda velocidade em direção ao aeroporto no final da Avenida Santos Dumont. Importante mencionar aqui que naquela época o aeroporto não contava com brigada de incêndio, de modo que em emergências como essa o Corpo de Bombeiros da cidade era convocado para prestar os serviços que fossem necessários. A curiosidade neste caso sempre era muito grande com muitos veículos seguindo os caminhões para seus passageiros acompanharem de perto os acontecimentos. Minha decisão ao ver aquela movimentação foi seguir atrás também já que naquele horário, certamente algo estava para acontecer. Aurea decidiu ir também, enquanto que as demais amigas resolveram ficar. No avião,  as luzes da cidade de Londrina já estavam próximas, anunciando o Comandante que o pouso seria realizado sem maiores preocupações, devendo afivelarem seus cintos de segurança. Levamos cerca de três minutos para chegar ao aeroporto e do lado esquerdo do terminal, onde hoje ainda existe um alambrado e um portão, nos deparamos com o acesso a pista todo aberto em função das viaturas dos bombeiros que por ali ingressaram. Entrei também e imediatamente após o acesso, cerca de 20 metros do portão, estacionei liberando porém a saída.  As viaturas estavam à margem da pista, mais ou menos em sua metade com as luzes vermelho e azul intermitentes. Tão logo descemos do Jeep, já vimos aquele enorme DC3 se preparando para aterrisagem, fazendo a aproximação ao que pareceu aos leigos, sem maiores problemas. Ninguém por ali sabia ainda que o motor esquerdo estava “embandeirado”.  Vinha descendo, normal, com o rugido do motor constante e firme. De repente, mais ou menos 30 metros de altura da pista e uns 80 metros, talvez 100 do seu início, o motor urra e ao invés de descer, o comandante arremete cuja manobra até hoje não se consegue a explicação cabal. Se simplesmente tivesse apagado o motor direito, a aeronave teria planado e descido sem nenhum revés. Ao arremeter, estávamos mais ou menos uns cem metros da pista, na lateral, vimos os rostos das pessoas olhando pelas janelas, possivelmente surpresas pela decisão do comandante de abortar a aterrissagem. As luzes do interior do avião estavam acessas. Urrando com seu único motor o avião começou a subir e se distanciar da pista. Em seguida, talvez a um quilómetro da cabeceira começou a fazer uma curva a esquerda, inclinando a asa.  Eu e Áurea, além dos demais espectadores que estavam ali e com toda certeza os bombeiros, e a torre e demais funcionários, acreditou que a manobra seria concluída com sucesso porquanto o pior teria passado que foi exatamente a arremetida inesperada.  Mas não foi isso que aconteceu! Tão logo começou a curva a esquerda, o avião, aquele enorme pássaro do ar feito de alumínio, girou completamente num ângulo de 90 graus, com o seu dorso virado para o aeroporto, e simplesmente despencou em direção ao solo.  Apenas tivemos tempo de dizer: “caiu!!!”.  Primeiro o clarão como se fosse um relâmpado. Depois o estrondo como se fosse uma bomba. Jamais havia visto,  assim como nunca mais vi,  um avião com o bico para o chão e o dorso virado para teu lado. As viaturas de imediato giraram e passaram por mim como um raio, enquanto que também com a mesma rapidez funcionei meu DKV e parti atrás dos caminhões.  A queda ocorreu onde era o horto florestal, perto do então Hospital de Tuberculose, hoje Hospital Universitário. Chegamos ao local junto com os Bombeiros que ainda estendiam as mangueiras para combater o incêndio. As labaredas não eram extensas e pessoal se movimentavam junto a uma das asas da aeronave tentando movê-la, não sei se para tentar salvar alguém ou pelo simples desejo de fazer alguma coisa. Ao se aproximar dos destroços, vi e esta cena está amarguradamente cravada na minha memória de onde jamais se desprendeu, dois ou três corpos no chão,  fumegantes, nus e os braços em posição de boxeador. Num primeiro momento não consegui entender aquilo, tamanho era o desespero. Por que nus? Por que soltavam fumaça? Por que aquela posição?  Alguns estampidos foram ouvidos e os gritos dos bombeiros e o lamento das pessoas que por ali estavam para ajudar.  Tentamos pensar em algum tipo de ajuda, quando então um oficial ali chegou e deu ordem para nos afastarmos, nós e outras pessoas que estavam próximas dos escombros sob alerta de que poderia haver mais explosões. Atendemos ao comando, retornamos ao Jeep, e após alguns momentos da mais pura incompreensão, funcionei o mesmo, fiz a manobra de retorno e deixei Aurea em casa. Somente depois disso consegui entender que os corpos estavam nus porque o fogo havia queimado as suas roupas;   estavam fumegando porque este mesmo fogo havia derretido as suas peles e as suas gorduras. E somente no ano seguinte, 1970, cursando o primeiro ano do Direito em Curitiba, na aula de Medicina Legal vim a entender aquela posição dos corpos.  Quando o corpo humano sofre uma ação intensa no fogo, chama-se isso de carbonização, com redução do volume corporal e redução da estatura de 100 a 120 cm. O corpo toma a posição de lutador de boxe, com semiflexão dos membros superiores e inferiores e dedos em garra. Foi o que vi e então entendi.  Houve um único sobrevivente que morreu dois dias depois na Santa Casa. Aquele simpático comissário que mencionei no início sofreu queimaduras tão graves, tão intensas, que seu corpo chegou a encolher, segundo o jornal da época. Pesquisei junto ao Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos as causas deste acidente. Na página  http://www2.fab.mil.br/cenipa/ consta um campo para pesquisar  a ocorrência dos acidentes em todo país, inclusive o resultado da investigação. Clica-se em “investigação” . Aparecem relatórios finais. Encontrei do ano de 1969 um único acidente, que não se refere a este relatado.  Londrina ingressou no ano de 1969 no universo dos grandes acidentes aéreos. Nunca mais estive no local da queda onde era o Matadouro Municipal. Fui lá esta semana e fiquei arrepiado pois cinquenta anos depois, exatamente o local da queda está preservado; uma quadra inteira cercada de arame farpado e é de propriedade da Aeronáutica.  Interessante como o silêncio ali é paupável.  Na área demarcada e mostrada abaixo, bem no seu lado esquerdo parei o meu Jeep. A rampa do Matadouro no lado direito da área ainda existe. Porque este avião caiu? Mas ficam ainda, cinquenta nos depois, no dia da publicação em rede social deste pequeno artigo, as dúvidas, principalmente os motivos que levaram o comandante a arremeter aquele avião quando estava preste a tocar o solo. Talvez jamais saibamos assim como jamais irei esquecer a tragédia daquele voo.  A Torre de Controle perguntou ao piloto quando houve o início da abortagem: "- Tudo bem?" Ao que respondeu o comandante: "- Tudo Certo". Insistiu a Torre: "-Mas tudo bem mesmo" Neste momento exato o avião embicou e a resposta não chegou a ser ouvida.  A partir dalí, o silêncio e as chamas.      Agradeço as pessoas que me ajudaram neste artigo: Angelita Prado que compartilhou comigo as pequisas na UEL; Cirilo Soares na busca do local da queda.

Rua Emílio Aranda Esquina com a Rua Dom João VI
Meu Jeep era muito parecido com este. Fonte: Google

Vista aérea do local do impacto obtida pelo Google
Mapa do Local do Impacto - Fonte: Google





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